O grande lustre brilha azulado, cortesia dos canhões de luz. Alguém me disse, não sei quem, muito menos quando, que foi feito em Osório. Ou talvez tenha sido em Santo Antônio, já não lembro. Do meu camarote no segundo piso ele parece próximo, onipresente em qualquer foto que se pense em tirar, mas não tão próximo quanto eu o percebia sentada nas galerias do nível superior (poleiro, para os íntimos), único que, quando adolescente, dava conta de pagar. Lá de cima, a sensação era de que bastava estender o braço para acariciar os passarinhos pintados na cúpula.
No palco, Hique Gomez e Simone Rasslan se despedem, explicando, no carregado sotaque sborniano, que retornarão assim que pedirmos o bis. Eu havia resistido ao convite do namorado – purista, queria preservar as vagas recordações agradáveis da versão original, com medo de arriscar a sequel –, mas seria a primeira vez dele no Teatro São Pedro, justo no dia do meu aniversário. Topei.
A primeira lágrima rolou discreta quando os rostos de um jovem Hique e do falecido Nico apareceram no telão colocado ao fundo do palco escuro e, sem fazer esforço algum de memória, cantei junto com eles o “Eu sei que pode ser que/Cair não caia/Doer não doa/Sofrer não sofra/Mas mesmo que seja assim, eu quero igual/Mas muito mais/Vou me perder no labirinto da ilusão/De lá não vou sair com as mãos abanando/Sem encontrar aquilo que eu não conheci”. Abriu-se um portal que me levou da cadeira de veludo bordô para o banco desconfortável do poleiro, o fim da adolescência, o primeiro de muitos janeiros em Porto Alegre, com acesso fácil, ou pelo menos possível, às diferentes formas de arte que tanta falta me faziam no Litoral.
Espetáculo terminado, me vi pensando num livro de que nem gostei tanto assim: A vida invisível de Addie Larue, história de uma jovem francesa que, em troca de liberdade e vida eterna, paga o preço de ser imediatamente esquecida por todos que cruzam seu caminho. “Valeu a pena?”, lhe pergunta o Diabo depois de um século de solidão. Ela, recordando a beleza de assistir a uma ópera pela primeira vez, responde “Valeu”.
A Sbórnia Kontra’Atraka e a instituição porto-alegrense que foi Tangos e Tragédias podem estar muito distantes de Tristão e Isolda (a obra de Wagner, datada de 1859, em que Addie pensava quando o Diabo a questionou), mas compartilham um fator essencial além da música performada ao vivo: o palco. Me atrevo a afirmar que sou admiradora de tudo que é tipo de arte; o teatro, porém, com sua unicidade, a magia do momento, a troca de energia entre os artistas e a plateia, ocupa um lugar especial no meu coração.
O teatro me proporcionou momentos lindos nesta vida, e nem me refiro aos anos distantes em que a artista era eu. No próprio São Pedro vi o Tholl de olhos brilhando, aplaudi o Hamlet do Thiago Lacerda e me embasbaquei (não há outra palavra) com os cenários e efeitos visuais de Misery, estrelando a Mel Lisboa. Foi também lá que Olívia assistiu compenetrada a João e Maria, e depois me falou, com toda a seriedade dos seus três anos, “gostei munto daquele adulto com roupa de coeio, mamãe”.
Chorei um pouco quando Os saltimbancos cantaram “A cidade ideal” no Teatro de Arena. Chorei muito quando um grupo cujo nome infelizmente esqueci cantou “Menininha” durante a Arca de Noé, no Renascença. Em Londres, virei uma das milhares de pessoas a jurar que não revelaria a ninguém o final de The mousetrap, adaptação d’A ratoeira de Agatha Christie, peça há mais tempo em cartaz no mundo, e, doze anos depois, ainda lembro com um sorriso do desmembramento do Cavaleiro Negro quando assisti a uma montagem do Monty Python no West End.
Não consegui pegar nenhuma peça no Globe Theatre, mas aproveitei muito o passeio pela réplica do local onde estreavam as peças do Shakespeare no século XVII, sem falar nas histórias e reconstituições do simpático senhor que foi nosso guia. Também gostei muito da moça que conduziu o tour pelo Teatro Municipal de São Luís, com histórias de apresentações passadas, da alta sociedade maranhense de outras épocas, da atriz que supostamente nasceu num camarim e, décadas depois, morreu (ou foi enterrada) ali. Do Colón de Buenos Aires não guardo guia nem relatos, só a beleza impressionante do lugar.
Diferente de Addie Larue, não tenho a pretensão de viver para sempre e, como o coprotagonista Henry, me preocupo muito mais do que gostaria com o passar dos ponteiros do relógio. Comecei a curtir mais o livro, aliás, quando a perfeição dela cedeu espaço à urgência de viver dele. Olhar para trás e retomar aquilo que já aconteceu costuma me trazer alguma tranquilidade. Teatro, música, cinema, televisão, pintura, escultura, fotografia e, claro, os livros, ah, os livros. Fico feliz em saber que coube bastante arte nesses meus 38 anos.
Adorei saber das leituras de fim da infância de vocês nos comentários e mensagens privadas que chegaram depois da última Enfim! Muito obrigada a todos que participaram. Agora, pergunto: quais foram as experiências teatrais ou outras manifestações artísticas que marcaram vocês?
Ah, aqui está A Verdadeira Maionese:
O que estou lendo: “Isso é o que mais assusta. Eu não sei. Os filhos mudam depois que saem de você. Quando saem de casa, passam a pertencer a outras pessoas’.”
As virgens suicidas, Jeffrey Eugenides
O que estou escrevendo: “Mas, na minha lembrança, era sempre o mesmo dia lá dentro. Sempre o Pica-Pau na TV, o roupão, um prato de sopa, a mãe ao telefone. Só mudavam as camisetas do Ronaldo. Ah, as camisetas do Ronaldo! Abríamos as persianas, de manhã cedo, já tomados pela expectativa. Era quase um frisson. Qual ele teria escolhido?”
A mesma merda, um projeto de conto para o livro
O que estou fazendo:
A Enfim teve o prazer de aparecer nas indicações de A Escrita É Meu Chão, a primeira newsletter que conheci aqui, e uma das minhas preferidas, e do Diário Aberto, que descobri há pouco tempo e venho acompanhando com gosto. Também foi citada na edição de estreia da Beiradas, num texto com que me identifiquei demais. Muito obrigada, Luísa, Carolina e Letícia 💜
Concluído o módulo “Crônicas: textos de vida curta (ou não)”, com o professor Guilherme Bica, na Especialização. Rendeu um texto que me agradou muito e que deve aparecer por aqui no final de outubro.
No grupo de Leitura e Escrita de Texto, andamos trabalhando narradores menos usuais: a segunda pessoa do singular (tu ou você) e a primeira pessoa do plural (nós).
Um texto lindo e nostálgico para mim. Vi Tangos muitas vezes e até hoje escuto do nada e do além em alguma instância "Na esbórnia se dança o copernico, oh, oh, oh". Abraço.
🫀! o teatro faz parte do meu coração!Não tive oportunidade de ir muito ao teatro, mas até hoje tenho vontade de voltar a atuar. ahh, e que legal saber que você se identificou com algo do que escrevi, porque só pela sua bio eu já sabia que me identificaria com coisas que você compartilhasse! 🫂