Pretendia começar explicando que não sei o que me levou até ali. Mas a verdade é que tenho minhas suspeitas, e talvez já tivesse na época: a batalha com Sora Madalena, a bibliotecária da escola, arqui-inimiga dos meus 11 anos.
Sora Madalena chegava de mansinho, bem quando eu tinha certeza de que a havia despistado. Era a única que não fazia o velho piso de madeira ranger. Saía de trás da mesa, se esgueirava por entre as estantes, espichava o pescoço por cima da minha cabeça e me lembrava:
– As etiquetas vermelhas são só a partir da sexta série, Dona Fernanda.
Para a Sora Madalena, não havia mas, nem meio mas. Era perda de tempo dizer que eu já tinha lido e relido tudo o que a escola oferecia do pré ao quinto ano. Que sabia de cor o Monteiro Lobato e o Pedro Bandeira, que não aguentava mais entrar na lista de espera da coleção “Meu primeiro amor” e, por mais que adorasse a “Vagalume”, precisava de algo novo. Precisava de mais.
Chovia na tarde em que criei coragem. Adultos no trabalho, Flavinha na creche, abandonei a TV, me empoleirei numa cadeira e alcancei os livros da minha mãe.
Os primeiros em que botei os dedos tinham lombadas coloridas, muitas páginas, e títulos que só dois ou três anos depois fui achar interessantes: Álbum de família, Joias, O rancho, Amar de novo. Danielle Steel. Tampouco simpatizei com os Nada dura para sempre e Conte-me seus sonhos do Sydney Sheldon.
Passei, então, para as lombadas brancas e finas da prateleira ao lado. Todos traziam na capa esqueletos, fantasmas, sarcófagos e pássaros pretos, além do mesmo velho de terno escuro e bochechas caídas que muito mais tarde descobri que se chamava Alfred Hitchcock. Os nomes me fizeram concluir que talvez fosse melhor guardá-los para um dia de sol e mais pessoas em casa: Histórias assombrosas, Histórias macabras, Histórias para ler com a porta trancada, Histórias de arrepiar os cabelos, Histórias que mamãe nunca me contou.
Restaram as lombadas ainda mais finas, porém coloridas, da prateleira de cima. Agatha Christie. A autora que me deu as boas-vindas ao mundo da literatura adulta. (Literatura para adultos? Literatura pós-infanto-juvenil? Não sei que termo usar para dar a entender que não estou falando, ou não estou falando unicamente, de romances hot.)
Meu escolhido, para iniciar os trabalhos, foi A casa torta:
Seguiu-se a ele a obra completa da Rainha do Crime, que me consolidou leitora, que até hoje influencia meus gostos e que pode ter sido um dos fatores que me levou a estudar inglês e visitar a Inglaterra com a sensação de estar voltando pra casa. De vez em quando bate aqui uma vontade grande de “ler algo tipo a Agatha”. Não encontro, caio de novo nela. Minha escritora-conforto.
Os horizontes se expandiram quando ganhei permissão para ir sozinha à biblioteca pública de Osório, onde não havia uma Sora Madalena de guarda – embora hoje eu pense que talvez devesse ter havido. Entrevista com o vampiro, horror atrás de horror do Stephen King, as cenas pra lá de quentes d’As brumas de Avalon. “Depois não sabem por que crescemos piradas”, riu uma colega de clube de leitura – que passou do juvenil direto para Carrie, a estranha – enquanto comparávamos nossas experiências.
O grupo do clube no WhatsApp atendeu prontamente ao meu chamado na semana passada quando pedi que me falassem dos livros e autores que os acompanharam nessa transição da literatura de gente pequena para a de gente grande. A primeira resposta: “Vale Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída?” “Vale!”, respondi, me lembrando de ler às escondidas a cópia que descobri na casa da minha avó.
Uma amiga contou que lia, também às escondidas, os “Sabrina” que a amiga dela pegava no quarto da tia. Outra citou Paulo Coelho – trazendo à minha memória a decepção que senti quando não gostei de Brida. Fãzona de Jovens bruxas, achei que seria sucesso garantido.
Teve aqueles que estrearam com os clássicos: de Shakespeare, Jane Austen, Sherlock Holmes, Poe, Caninos brancos e Admirável mundo novo ao Alienista do Machado, A vida como ela é do Nelson Rodrigues e Comédias da vida privada do Luís Fernando Verissimo. O campeão de menções, porém, não foi o Verissimo filho, mas o Verissimo pai.
O tempo e o vento.
Incidente em Antares.
Olhai os lírios do campo.
Clarissa.
Clarissa apareceu cedo pra mim. Fecho os olhos e consigo até enxergar a menina andando entre os ipês floridos de Porto Alegre, sentir com ela a tristeza e a culpa pela morte do Tonico, o desconforto causado pela proximidade do Amaro. Os outros do Erico eu descobri na fase das leituras obrigatórias do vestibular e me apaixonei. Foi do Olhai que tirei o nome da minha filha.
Falando nela, Olívia está pra completar uma década de vida. Já terminou seus Harry Potter, está começando seus Percy Jackson e, que eu saiba, ainda não brigou com bibliotecária nenhuma. Por via das dúvidas, passei por um sebo um dia desses e comprei O misterioso caso de Styles, o primeiríssimo que a Agatha publicou, mais de cem anos atrás. Está chegando a hora de abastecer minhas estantes.
A ideia de escrever sobre as leituras de transição da infância para a adolescência quem me deu foi a
numa troca de comentários nas Notas. Muito obrigada, Vanessa! As reflexões que este texto pediu renderam muitas lembranças boas e papos incríveis 🙂O que estou lendo: “Ela pausa na seção de memórias, estudando os títulos nas lombadas, tantos ‘eu’, ‘mim’ e ‘meu’, palavras possessivas para vidas possessivas. Que luxo, poder contar a própria história. Ser lido, ser lembrado.”
A vida invisível de Addie LaRue, V. E. Schwab – livro do mês do Clube da Palavra Mágica, formado por ex-colegas do curso Formação de Escritores para incentivar leituras variadas, manter o contato e, claro, se reunir todo mês para um cafezinho e uma fatia de torta.
O que estou escrevendo: “Falando no Bruno, chegou mensagem. Rita torce o cabelo e seca as mãos. Vai trazer um cara novo do trabalho, Vitor. Ferrou. Rita nunca viu o tal do Vitor, nem ouviu falar, mas já sabe que é gato, que é gostoso, que é charmoso e engraçado. Porque é assim que a vida dela é.”
Coitada da Rita, conto que escrevi para a disciplina da Cíntia Moscovich na pós e que vai entrar pro futuro livro.
O que estou fazendo:
Animadíssima para participar de outro clube de leitura: o Clube Agatha de Leitura Coletiva, organizado pela minha amiga
. Estamos aceitando interessados em ler a obra da autora com mais livros vendidos no mundo.Na PUC, começamos a disciplina “Crônicas: textos de vida curta (ou não)” com o professor Guilherme Bica e agora estou preparando um texto que espero que venha parar aqui em breve 😊
Hoje serão os terceiros encontros dos grupos de escrita e leitura de texto que estou conduzindo. Por enquanto passo bem.
Adorei o texto. Voltei no tempo enquanto lia e cheguei a conclusão de que nunca me dei bem com bibliotecárias ahahaha. Qndo eu pedia alguma dica, elas em sua maioria diziam que ainda não era o momento de eu ler, como diziam isso pra uma adolescente ansiosa? Hahaah
Fer! Que newsletter cheia de lembranças e boas dicas de leitura! Eu, quando quero uma leitura "conforto", sempre caio na Agatha. Vamos em frente no clube! 🖤🫖