Os raios do sol douravam o Guaíba e atravessavam com gosto a vidraça, ignorando as cortinas, transformando em uma pequena estufa aquele cantinho da cervejaria. Me encolhi um pouco mais na ponta do banco, na vã tentativa de aproveitar a risca de sombra que me cabia. Depois, enxuguei discretamente o suor que se acumulava acima dos lábios. O ar condicionado daquela parte do shopping havia parado de funcionar, mas nos garantiram que logo, logo tudo se resolveria. Enquanto isso, eu fazia o cardápio de leque e bebia gole atrás de gole da minha água com gás, gelo e limão — detesto cerveja.
Fazia tempo que eu não saía de casa. Pelo menos, não para socializar, só o leva-e-busca filha na escola, supermercado, as infinitas sessões de fisioterapia e consultas médicas de um primeiro trimestre que se encerrou adoentado. Sair naquele domingo também não era o ideal. A casa estava particularmente suja, havia uma montanha de roupas lavadas para dobrar e guardar, uma montanha ainda maior de trabalhos para a semana seguinte que eu bem que poderia adiantar. Mas não. Escolhi um vestido florido, entrei no carro da Camila e atravessei Porto Alegre debaixo do calor que abafava aquele final de março.
Tudo para não perder o primeiro encontro pós-férias do Clube da Palavra Mágica.
O Clube da Palavra Mágica surgiu há coisa de meio ano. Ideia da Ana para manter o contato com as colegas do curso de Formação de Escritores após o término das aulas (e agora com as agregadas muito bem-vindas que não param de chegar). A cada mês, uma escolhe o livro que vamos ler e o café onde ele será comentado. Já analisamos muito seriamente As maravilhas, gostamos do plot mas não da escrita de A vida invisível de Addie LaRue, ranqueamos os contos de Antes do baile verde, tivemos opiniões bastante divergentes sobre A quarta asa, nos identificamos um tanto com A mulher de dois esqueletos. Em abril será a vez de Fazes-me falta, nossa primeira leitura que — acabei de me dar conta — não começa com a letra A. Um marco na nossa curta história.
São coisas engraçadas os clubes de leitura. Em Como ficar sozinho (2002), o romancista e ensaísta Jonathan Franzen conta que por muito tempo desconfiou deles, pois achava que encaravam a literatura como um vegetal de gosto ruim que só se consegue engolir acompanhado de uma colherada de interação social. Passou a rever seus conceitos após a ascensão da cultura dos eletrônicos, descrita por ele como uma maré que subiu demais e transformou escritores e leitores (para não dizer as pessoas em geral) em ilhas cada vez mais isoladas.
Franzen fala muito em solidão quando fala em leitura, chegando a dizer que a leitura se alimenta dela para depois acentuá-la. Acho que entendo. A leitura é uma prática essencialmente individual e que implica certo isolamento, seja o isolamento momentâneo de escolher passar parte do dia sozinha com um livro, seja o isolamento por vezes esmagador que vem de dentro e te conduz aos livros em primeiro lugar.
Após dedicar anos de sua carreira a investigar o porquê as pessoas leem romances “sérios”, a antropóloga Shirley Brice Heath chegou à conclusão de que existem três tipos de leitores: os que leem por status, os que adquiriram o hábito de ler quando crianças graças ao exemplo familiar e depois encontraram outras pessoas para compartilhar esse interesse, e aqueles que leem porque precisam. Porque não têm escolha. Porque é na leitura que eles se comunicam, se conectam, ganham e dão sentido. São os chamados leitores persistentes.
Eu me reconheci demais na descrição que Heath faz do leitor persistente: a criança que muito cedo se percebe diferente das pessoas ao redor e transporta seu senso de diferença para um mundo imaginário. Por não conseguirem se comunicar com os outros, estabelecem um diálogo fundamental com os livros e criam com eles — e por meio deles, eu acrescentaria, pensando na importância de obras como Harry Potter para a minha geração — uma espécie de comunidade.
Diz Heath que os leitores persistentes são os que têm mais probabilidade de um dia se tornarem escritores. Faz sentido que a palavra escrita, após ter sido o principal meio de comunicação na infância, continue sendo essencial para a sensação de conexão na vida adulta. “Você é um indivíduo socialmente isolado que deseja desesperadamente se comunicar com um mundo imaginário substantivo”, ela rotula Franzen, e eu, do outro lado do Kindle, concordo vigorosamente com a cabeça.

Gostei muito da imagem pintada por Franzen do leitor como uma ilha. Gostei mais ainda quando ele sugere a importância de assumirmos hoje — na “era da evanescência” — um papel mais ativo em ligar uma ilha a outra para não só criar uma comunidade, mas garantir que ela continue existindo. Uma comunidade, nas palavras dele, formada por leitores de todos os tipos, unidos na necessidade de solidão e na tentativa de escapar dela por meio da palavra impressa.
Enxergo os clubes de leitura aí. Eu, por exemplo, sempre quis participar de um. Foram várias as tentativas ao longo dos anos e, neste momento exato da vida, tenho a sorte de ser membro oficial de três. Do Desencalha Literário, criado pela Angie e dedicado a livros que estão acumulando pó em nossas estantes, e do grupo dedicado a reler minha escritora-conforto Agatha Christie e coordenado com muito amor pela
, tenho participado menos do que gostaria. Sobrecarga, incompatibilidade de horários, a vida que teima em acontecer, sabem como é. Então é dos encontros do Clube da Palavra Mágica que estou conseguindo sair com o coração quentinho e a sensação de um pequeno sonho realizado.Para encerrar, mais uma fala bonita do Franzen:
“Como não me sentir isolado? Eu era um leitor. Minha natureza havia esperado por mim o tempo inteiro e agora me recebia com prazer. De repente entendi como estava faminto por construir e habitar um mundo imaginado. A fome era a solidão que estava me matando. Como pude pensar que precisaria me curar para me encaixar no mundo ‘real’? Eu não precisava me curar, o mundo também não; a única coisa que precisava de cura era meu entendimento do meu lugar no mundo.”
Um viva a encontrar o seu lugar e encontrar a sua turma.
Aproveito para me desculpar pelo atraso desta edição da Enfim. Fiz um enxerto ósseo dentário esta semana e, ocupada demais que estava sentindo pena de mim mesma, fiquei sem tempo para ajeitar tudo por aqui.
Falando em clubes de leitura, ficaram sabendo do grupo na Califórnia que passou 28 anos lendo o mesmo livro? A obra escolhida foi o misterioso Finnegans Wake, do James Joyce, no modesto ritmo de uma página por mês. Gostaram tanto da experiência que, um mês depois de encerrar o último capítulo, recomeçaram.
O que estou lendo: “Ele retardava-me a combustão. Era capaz de passar uma noite inteira a beijar-me um só dedo, o mais pequeno. Depois de uma tarde inteira a conversar lentamente, saboreando histórias antigas e alheias. Dizia que quem falava muito de si gastava-se mais depressa. E então eu comecei a gastá-lo. Gastei-o tanto que, depois de mim, ele começou a procurar uma vida. Uma história em que pudesse travar a nossa não-história.”
Ainda de Fazes-me falta, da Inês Pedrosa. Persisto.
O que estou fazendo:
Pós de folga para a Páscoa, mas uma lista de trabalhos a fazer, todos focados no desenvolvimento do romance. A ideia que antes era só uma ideia agora começa a ter cara de possibilidade.
Esta semana tem leitura dos textos de nossa autoria no curso de extensão sobre A filosofia da composição. Os muitos debates sobre as teorias do Poe e a importância do efeito me ajudaram a terminar um conto inacabado há mais de ano. Às vezes é bom escutar (ou ler) quem sabe das coisas.
Cheguei ao fim da news emocionada e com uma sensação de conforto no coração :)
Seus textos são sempre ótimos, Fer! Aqui li trechos de autores que ainda não li, e vejo que não há maneira melhor de crescer e de se conhecer melhor que lendo. Não sei se fez sentido kkk, mas espero que sim! Eu, no momento, ando em busca de um novo lugar, uma nova turma. Não estou perdida, só acho que está na hora de renovar mesmo, sabe? Talvez o meu lugar sempre tenha sido esse mesmo: o de me realizar circulando por diferentes tribos, e talvez a proximidade dos 40 esteja me pedindo para encontrar uma nova. Refletindo por aqui, bjs!