A Travessa dos Lanceiros Negros estava cheia naquele domingo. Música ao vivo, bancas e mais bancas de comidinhas, bebidas, produtos feitos à mão. Olívia, na época com cinco anos, se encantou pelos bichos coloridos de madeira para empilhar. Jumento, cachorro, gato, galinha. “Os Saltimbancos, mamãe, os Saltimbancos!”
Minha amiga Melina se juntou a nós um tempo depois, dividimos uma pizza e, em seguida, um Uber. “Acabei de largar um casal que chegou hoje da Itália”, ele alertou. “Tudo bem se vocês quiserem cancelar a corrida.” Que exagero, pensei. Entramos as três.
No dia seguinte o mundo parou.
Não o mundo de todo mundo, eu sei. Mas o meu e o de muita gente. Uma das lembranças mais vívidas que tenho é o silêncio daqueles primeiros dias. Olhar pela janela e tentar entender as ruas desertas. Os rostos espiando por trás das cortinas. As pombas. Nunca vi tanta pomba.
Não pretendo escrever sobre os medos, as perdas, as indignações ou as saudades. A pandemia foi universal. Quarentena acredito que cada um viveu a sua. Com a chegada do quarto aniversário, me peguei refletindo sobre a minha. Apartamento pequeno, uma cachorra enlouquecida, uma criança que queria ser entretida e muito, muito tempo livre.
Monta lego, brinca de boneca, um quebra-cabeça, amarelinha no corredor, agora boliche, que tal aquele jogo, vamos tentar este artesanato novo, faz bolo, faz pão, tá na hora do lanche, como assim ainda são três da tarde?
Foi então que tive a ideia salvadora: livros de capítulos. Vou ler em voz alta pra ela. Quem sabe inventar umas vozes pra animar as coisas.
Começamos pelo que a mãe formada em Letras – Inglês tinha em casa. Alice no País das Maravilhas, O Jardim Secreto, A Princesinha. Um, dois, até três capítulos de uma vez. Peter Pan foi intenso. Pensei em interromper a leitura enquanto Sininho agonizava; os olhos de Olívia se encheram de lágrimas. Quando Peter pediu que as crianças que acreditavam em fadas batessem palmas para salvá-la e ela, de um salto, se pôs a aplaudir ferozmente, quem chorou fui eu.
As Crônicas de Nárnia nos ocuparam por um bom tempo. Sete livros sobre meninas-rainhas-guerreiras? Tive que ler duas vezes cada um (menos o último; do último ela não gostou). Até um Peregrino da Alvorada de bandeja de ovos fabricamos.
Minha fase preferida foi a do Ursinho Pooh. Só conhecia a versão adaptada da TV, não estava preparada para a lindeza dos originais. Para minha frustração, não consegui criar uma boa voz para o Tigrão nem para o Bisonho. (“É Ió, mãe.” “No meu tempo era Bisonho e quem está lendo sou eu.”) Mas o meu Leitão, ah, o meu Leitão! Fiz Olívia chorar de novo, desta vez de tanto rir. Quem diria que eu levaria tanto jeito pra interpretar um porquinho cor-de-rosa com crises de ansiedade, não é mesmo?
Esse talento para porcos me serviu quando passamos para a literatura dos EUA e A Teia de Charlotte. Wilbur é um protagonista e tanto. Dos EUA pulamos para a Suécia da maravilhosa e única Píppi Meialonga. Não sei como descobri a Píppi; só sei que lamentei não ter conhecido antes. Fernandinha teria adorado a companhia dela nas tardes osorienses.
Nossas leituras diminuíram de frequência quando voltamos a viver do lado de fora. Aliás, achei que fossem acabar de vez depois da alfabetização. Que nada. Hoje até estou levemente rouca – os capítulos d’O Cálice de Fogo são um tanto longos. Minha pré-adolescente, que agora acompanha a leitura com a pontinha do dedo para ter certeza de que não pulei nada, já me disse algumas vezes que minha interpretação de Draco Malfoy é péssima. Mas acha a Professora McGonagall excelente, vive me imitando. Meu momento de glória veio, porém, quando assistimos juntas O Prisioneiro de Azkaban, terminada a leitura, e ela me informou que meu Lupin é melhor que o do filme. Desculpa aí, David Thewlis.
O que estou lendo: “Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.”
Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo
O que andei escrevendo: “Em frente a nós, um homem desconhecido espalhava caixas ao meu redor. Dele não lembro nada; era somente uma sombra. Através da franja sempre longa demais, eu olhava fascinada para as caixas de papelão fechadas, cheias de mistérios e possibilidades.”
Pensei em compartilhar trechos dos meus textos, em vez de um pequeno resumo. Este faz parte do primeiro texto que escrevi lá em 2022, quando criei coragem e me matriculei no excelente curso de autoficção do professor Pedro Gonzaga. Se chama O Violão do Quico e há pouco tempo foi publicado na Coletânea de Cronistas Contemporâneos 2024 da Editora Persona.
E você, tem uma leitura especial de quarentena pra compartilhar? Quem sabe um livro de capítulo pra nos indicar?
Concluí a leitura emocionada lembrando dos momentos vividos na pandemia. Tu conseguiu levar um pouco de paz pro teu lar, criando memórias junto da tua filha, deixando os medos e as incertezas do lado de fora. Parabéns, adorei o texto!
Adorei esse relato! Ainda mais em ver os livros da Pippi na prateleira por aí 😍 por aqui o "livro de capítulos" preferido é o Hobbit e a Rônia (também da Astrid). É muito lindo ver crianças leitoras 💛